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quinta-feira, 3 de maio de 2018

"Poema à Mãe" de Eugénio de Andrade



No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.


Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.


Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.


Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.


Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.


Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.


Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!


Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;


Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;


Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...


Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.


Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.


Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

sábado, 28 de abril de 2018

Um poema e uma ilustração para o Dia da Mãe

Lin Wang








SÓ POR ISSO, MÃE


Mesmo que a noite esteja escura,
Ou por isso,
Quero acender a minha estrela.


Mesmo que o mar esteja morto,
Ou por isso,
Quero enfunar a minha vela.


Mesmo que a vida esteja nua,
Ou por isso,
Quero vestir-lhe o meu poema.


Só porque tu existes,
Vale a pena!

Lopes Morgado, “Mulher Mãe”

sexta-feira, 30 de março de 2018

Poemas de ponta & mola





poesia & poesia


poesia pró coração
poesia procuração
poesia rissóis pra fora
poesia para a velhice
para atrasados mentais
e também prá parvoíce

poesia libidinosa
para acordar os chéchés
e pra outras coisas mais

a poesia cor-de-rosa
para corações doentes
de donzelas suspirosas
rosas rosas amarelas

poesia clorofilada
para lavagem de dentes

poesia para o natal
expressamente encomendada
e poesia natalícia
pró menino dos papás
a poesia necrológica

dum velhinho trucla zás

a poesia só formal
porque o poeta coitado
tem o vício de escrever


a poesia cautelosa
porqu’isto nunca se sabe


a poesia fadunchada
e uma fadista aluada


a poesia da borbulha
que passa depois daquilo


poesia obrigada a mote
a cavalo num poeta
sentado num burro a trote


a poesia pra que conste
dum poeta muito muito
muito muito muito bicha

poesia quinquagenária
duma jovem rapariga


poesia bordada à mão
dum ancião já sem pé


a poesia ao pé da mão
a poesia ao pé do pé


poesia encapada capada


poesia para tudo
poesia para nada




Mendes de Carvalho "Poemas de ponta & mola"
 
Via Bruaá Editora

quinta-feira, 8 de março de 2018

"Há mulheres que trazem o mar nos olhos" diz Sophia de Mello Breyner

Charles Dana Gibson



Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Obra Poética"

sexta-feira, 2 de março de 2018

"A Leitora" por António Ramos Rosa

Leopold Carl Müller, 1834-1892


A Leitora


A leitora abre o espaço num sopro subtil. 
Lê na violência e no espanto da brancura. 
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa. 
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco. 
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra. 

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento. 
Desce pelos bosques como uma menina descalça. 
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva 
em chama de água. Na imaculada superfície 
ou na espessura latejante, despe-se das formas, 

branca no ar. É um torvelinho harmonioso, 
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira 
na sede obscura de palavras verticais. 
A água move-se até ao seu princípio puro. 
O poema é um arbusto que não cessa de tremer. 

António Ramos Rosa, in "Volante Verde" 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Um poema de amor de Fernando Pessoa para o Dia dos Namorados

Fernando Vicente



O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar.


Fernando Pessoa

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

"Poema de Natal" de Manuel Maria Barbosa du Bocage



Edward Burne-Jones, Star of Bethlehem, 1890


Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.

Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.

Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.

Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.


Manuel Maria Barbosa du Bocage

quarta-feira, 8 de março de 2017

"Era a mulher": um poema de Pedro Homem de Mello


Pelo Dia Internacional da Mulher, 8 de Março, aqui fica um poema e uma pintura.


Gustav Klimt

Aleluia

Era a mulher — a mulher nua e bela,
Sem a impostura inútil do vestido
Era a mulher, cantando ao meu ouvido,
Como se a luz se resumisse nela...

Mulher de seios duros e pequenos
Com uma flor a abrir em cada peito.
Era a mulher com bíblicos acenos
E cada qual para os meus dedos feito.

Era o seu corpo — a sua carne toda.
Era o seu porte, o seu olhar, seus braços:
Luar de noite e manancial de boda,
Boca vermelha de sorrisos lassos.

Era a mulher — a fonte permitida
Por Deus, pelos Poetas, pelo mundo...
Era a mulher e o seu amor fecundo
Dando a nós, homens, o direito à vida! 

Pedro Homem de Mello, in "Miserere" 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Um poema sobre livros de Eugénio de Andrade / Beautiful woman reading



Frederic Soulacroix,  1858-1933


Num exemplar das Geórgicas

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.


Eugénio de Andrade

terça-feira, 7 de abril de 2015

Um café e um poema



ARTE POÉTICA

Num romance, uma chávena é apenas
uma chávena — que pode derramar
café sobre um poema, se o poeta,
bem entendido, for a personagem.

Num poema, mesmo manchado
de café, a chávena é certamente a
concha de uma mão — por onde eu
bebo o mundo, em maravilha, se tu,
bem entendido, fores o poeta.

No nosso romance, não sou sempre
eu quem leva as chávenas para a mesa
aonde nos sentamos a noite, de mãos dadas,
a dizer que a lata do café chegou ao fim,
mas a pensar que a vida é
que já vai bastante adiantada para os
livros todos que ainda pensamos ler.

No meu poema, não precisamos
de café para nos mantermos acordados:
a minha boca está sempre na concha da tua mão,
todos os dias há páginas nos teus olhos,
escreve-se a vida sem nunca envelhecermos.


segunda-feira, 23 de março de 2015

"Os livros" por Manuel António Pina / "La Madeleine lisant"

"La Madeleine lisant", Jean-Baptiste Camille Corot


Os livros

É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca, 
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo "eu" entre nós e nós?

Manuel António Pina, in Como Se Desenha Uma Casa, Assírio & Alvim, 2011

sábado, 8 de março de 2014

Um poema para a Mulher porque hoje é o seu/meu/nosso dia


Jessica Rae Gordon 


MULHER


A mulher não é só casa
mulher-loiça, mulher-cama
ela é também mulher-asa,
mulher-força, mulher-chama


E é preciso dizer
dessa antiga condição
a mulher soube trazer
a cabeça e o coração


Trouxe a fábrica ao seu lar
e ordenado à cozinha
e impôs a trabalhar
a razão que sempre tinha


Trabalho não só de parto
mas também de construção
para um filho crescer farto
para um filho crescer são


A posse vai-se acabar
no tempo da liberdade
o que importa é saber estar
juntos em pé de igualdade


Desde que as coisas se tornem
naquilo que a gente quer
é igual dizer meu homem
ou dizer minha mulher


José Carlos Ary dos Santos

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Hoje é dia de ler cartas de amor...ridículas / Time for love letters


s.id.

Quando se fala de cartas de amor (que já as escrevi) vem-me sempre à cabeça Fernando Pessoa:

    Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor se não fossem
    Ridículas.

    Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.

    As cartas de amor, se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.

    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    Quem me dera no tempo em que escrevia
    Sem dar por isso
    Cartas de amor
    Ridículas.

    A verdade é que hoje
    As minhas memórias
    Dessas cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    (Todas as palavras esdrúxulas,
    Como os sentimentos esdrúxulos,
    São naturalmente
    Ridículas.)


                  Álvaro de Campos, 21-10-1935

domingo, 19 de janeiro de 2014

"Poeta Castrado Não"!!!

Ary dos Santos.



Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:


cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.


Serei tudo o que disserem:


Poeta castrado não!


Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:


ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegada poesia
quando ela nos envenena.


Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:


De fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?


Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!


- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia !


Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:


Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.


Serei tudo o que disserem:


Poeta castrado, não!


in SANTOS, Ary dos. - Resumo. Lisboa, 1973."

domingo, 12 de janeiro de 2014

Lisboa, sabes...




Alguém diz com lentidão: 
"Lisboa, sabes..." 
Eu sei. É uma rapariga 
descalça e leve, 
um vento súbito e claro 
nos cabelos, 
algumas rugas finas 
a espreitar-lhe os olhos, 
a solidão aberta 
nos lábios e nos dedos, 
descendo degraus 
e degraus 
e degraus até ao rio. 

Eu sei. E tu, sabias? 


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Um poema subaquático de Sophia de Mello Breyner Andresen





Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.


Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

domingo, 21 de julho de 2013

Escolho palavras como quem procura conchas




Entretenimento
Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.


Luísa Dacosta

quinta-feira, 18 de julho de 2013

"Para escrever o poema" de Nuno Júdice






PARA ESCREVER O POEMA

O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

Nuno Júdice

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